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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Viajando com a caravana *

O anno era 1847, ou 46, não me lembro bem, estávamos todos ávidos em desbravar o sertão para que as Minas Gerais fossem uma capitania de força no nosso glorioso Brasil. Eu conhecera de véspera Teófilo, dos Otoni, em uma reunião informal em uma praça fria da comarca de nossa cidade, o Serro frio, de onde avistávamos a capela de Nossa Senhora da Conceição, quando ouvi Teófilo dizer que Sua Majestade, Dom Pedro, estava interessado em terras que Victor Renault vislumbrara subindo os rios da Região de Todos os Santos e Mucuri. 

Eram histórias antigas, mas que nos avivavam as mentes e curiosidades. Teófilo falava em organizar uma excursão, uma não, duas excursões para subirem os rios em direção ao sertão que citara Renault – queria Teófilo fundar uma cidade que fosse um centro de progresso no Norte da Capitanias das Minas Gerais. 

Uma excursão partiria com a chefia de seu primo, Dom Manuel Esteves Otoni, e a outra seria cargo dele mesmo e seu cunhado Joaquim Maia, saindo com rumo à Santa Clara, em direção ao oeste bravio. As duas expedições encontrar-se-iam em Santa Clara – era o início da Companhia Mucuri, que organizaria o transporte direção sertão adentro, pelo rio e pela terra. Na seleção dos cabras que subiriam o caminho, levava em conta se tivéssemos facões e espingardas : eu os tinha e em bom estado. 

Selamos os cavalos com boas provisões de fumo, arroz e toucinhos defumados, em conjunto com barriletes de pólvora, já que ficamos sabendo que no recôndito da mata se encontravam "botocudos", índios ferozes e astutos. A organização das expedições tomou muito tempo. Eu mal continha meu entusiasmo, mas já se iam dois anos e nada… Finalmente, em 1852, de madrugada, a neblina fria cortando nossos rostos, partimos em direção à mata cerrada do Mucuri. 

Viagem sofrida, lenta, muito desbaste de mato, cipós se entrelaçavam com cobras que a toda hora nos davam bote, mas o que mais dava medo era a presença dos índios, que sutilmente apareciam durante os pousos ou assoviavam na mata de maneira muito peculiar. Teófilo dera a ordem de nunca atirar nos nativos – no primeiro ataque, atiramos para cima e a algazarra os dispersou. Mas uma certa manhã, com alguns homens ainda sonolentos, os botocudos fizeram uma incursão violenta pelo nosso acampamento e ao mesmo tempo sumiram pelas brenhas da mata, deixando dois homens mortalmente feridos, quatro feridos leves, mas todas nossas mulas e cavalos jaziam no chão, em poças de sangue coagulado e inertes. 

O que faríamos, pensávamos, mas Teófilo nos exortou a continuar – já estávamos de tal maneira embrenhados na mata que voltar seria igualmente penoso. Recolhemos as nossas tralhas da maneira que deu, cada um carregando o que conseguia, e continuamos na nossa marcha inexorável rumo ao oeste. 

O medo era patente, o rio era nosso companheiro e guia, e continuávamos, numa caminhada sempiterna. Mas os recursos foram se esgotando, assim como os homens que não conseguiam dormir, nem comer direito. 

Quando findaram os mantimentos, alguns desertores se voltaram para o leste e iniciaram a caminhada rumo à jusante do rio, insatisfeitos com a viagem e desesperançosos com as promessas de Teófilo de que chegariam a algum pouso decente. Nossos mantimentos acabaram, e a solução foi comer frutinhas doces das árvores, e palmitos sem gosto que porventura encontravam. 

A terra era por demais inóspita para fornecer alguma caça: nem desperdiçávamos mais munição como medo do retorno dos "botocudos". De tardinha os mosquitos não nos davam trégua: minhas pernas estavam inchadas, meus olhos fundos, coçava incessantemente, mas eu permanecia no firme propósito de acompanhar Teófilo, aquele homem que eu vira discursar com entusiasmo no Serro. As terras eram cheias de morros e abismos, uma vegetação retorcida nada oferecia, esturros de onça assustavam os viajantes, mas Teófilo continuou inabalável em direção ao Oeste, mesmo com o moral de seus tropeiros, fartos de carregar toda a tralha nas costas, indo cada vez mais para baixo. 

E eis que um dia, cerca de 28 léguas da Cachoeira de Santa Clara, os viajantes divisam uma linda planície com uma terra boa e fértil, que causa alegria nas tropas que já endurecidas pela viagem, já não ríamos. E assistimos a Teófilo subir em uma pedra e gritar para nós, todos rotos e aflitos: 

- Chegamos, aqui fundaremos nossa cidade dos amigos, nossa Filadélfia! 

E assim fez Teófilo, nosso chefe da expedição: inaugurou sua cidade dia 7 de setembro de 1853, para que a pátria aniversariante cedesse um lugar à mesa para nossa cidade, através do assentamento da primeira rua daqui – a rua Direita, plana e reta, de norte a sul. 

Com muito gosto, fiz parte da expedição, e apesar dos mosquitos, botocudos, diarréias e febres, tenho orgulho de ter sido chefiado rumo ao futuro pelo nosso tão amado Dr. Teófilo Otoni!

* Conto premiado com Menção Honrosa no VI Prêmio Literário da Academia de Letras de Teófilo Otoni, ano 2021

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