Chicão tinha acabado de comer no prato de barro havia levado para o roçado - tinha arroz, feijão, um pouco de quirera. A carne era o coió. O suficiente para aguentar até a noite, quando voltaria ao arraial. Ainda tinha o gosto de sangue na boca que o coió arrancara de sua língua, mas era melhor do que nada de carne.
O Sol tinha dado uma trégua e a sombra que ele desfrutava embaixo da árvore da mata que ladeava o roçado era generosa. Até friinha, talvez.
Sua mulher estava buchada. - Seria quem que nasceria, pensava ele.
A vida no arraial era arretada, mas era a vida que Deus mandou. Chico se comprazia dessa vida, não pensava muito na sucessão dos dias, apenas vivia. E sua dona estava esperando um rebento seu. Essa idéia o dizimava, não sabia se seria mais um filho homem para lhe ajudar, ou uma filha para lhe estorvar. Gente de roça era assim, pensou. Precisa de menino.
Na verdade, o arraial era um quilombo, não daqueles que fugidos que fundavam meio que escondidos: era um quilombo onde seus antepassados tinham chegado ali fugindo da seca, do estertor do calor que trincava o chão e silvava entre as pedras.
Resolveu voltar para sua tapera. Seu serviço ali acabara, e ele estava mais a fim de ir deitar-se, de esticar o esqueleto para ganhar de volta os bocadinhos que o tempo lhe roubara na altura. Pensou, enquanto caminhava na sua cama no alto da árvore - malditas sejam essas onças que nos assolam de madrugada, ruminando entre os dentes gastos de cortar capim para fazer cesto.
Caminhando por entre a mata, já distante do roçado, começou a escutar alguns gritos, lamúrias, não conseguia discernir de quem - era uma algaravia de uma maneira tão desordenada, que não dava para escutar qual era a estória. Teria que chegar.
Apertou o passo e a picada logo o levou para o centro do quilombo, em uma clareira na mata. As casinhas todas apontando para o meio do terreirão davam uma sensação de segurança e comunidade. Ali era seu lar. Logo notou a confusão no meio do terreiro. Uma mulherada gritava, batendo nas cabeças descobertas, em volta da carcaça de um boi, que de tempo que estava ali, já juntava moscas pretas e verdes brilhante em sua volta.
- Ai, o boi morreu, ai ai morreu o boi! - gritavam todas as mulheres do quilombo, enquanto batiam os pés no chão e levantavam uma poeira alaranjada seca, grossa, irritante.
Chicão chegou perto e só viu as moscas que andavam pelas órbitas vazias do boi, já meio cheias de larvas brancas que se retorciam nervosas com o calor.
- Chama o nosso feiticeiro, Nhô Lau, pra mode de ver se revive o boi!! - vociferou Chicão para as crianças que se amontoavam ali para desfrutar do espetáculo.
Nho Lau já vinha se arrastando há algum tempo, alertado pela balbúrdia. Só que ele usava uma bengala de galho de árvore, muito lustrosa, e era muito velho. Demorava. Mas vinha.
Depois de minutos de choradeira, poeira e gritaria, Nho Lau põe a mão no boi e grita algumas mandingas e rezas, benzeduras e imprecações, mas nada da carcaça se mexer. Assim, Nho Lau, sem falar nada, se vira, e volta para sua mansarda, arrastando suas pernas empurradas pela bengala.
- Chama o pajé! - grita o velho, na sua voz rouca, já meio distante do boi.
Os meninos trouxeram o pajé que morava no mato, ali do lado do quilombo. Como ele era índio, mas sozinho, preferia ficar ao largo do que junto com os moradores dali. Sentia-se de fora. Ele veio rápido. Não tinha bengala. Mas trazia um chocalho na mão esquerda.
Acercou-se do boi, cantou, chacoalhou o chocalho, vociferou rezas e nada. Retirou-se também humilhado para a mata, desolado, já que sabia do valor daquele boi para o quilombo. Aquele bicho era o trator, o carro, o caminhão dali. Tudo pesado era encargo dele. Quem iria carregar todos aqueles tarecos pesados, as compras, quem iria puxar o arado. O boi era muito importante.
A algaravia continuava. As mulheres gritavam, os meninos caçoavam, a comoção era geral.
Eis que, de troça, surge um menino no meio da multidão, entra no círculo e sopra o rabo do boi, o que faz com que a carcaça fique de pé e saia chifrando e escoiceando todos pela frente.
E o boi correu para o nordeste, pulando e chifrando. E virou causo do quilombo: Dizem que está correndo até hoje, mas sem os olhos!
E todo ano ele volta!!!!
* Conto premiado no V Concurso Literário da Academia de Letras de Teófilo Otoni, 3o lugar, ano 2020
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