Serapião mal se sustinha em cima de seu cavalo.
* Conto premiado no VI Prêmio Literário da Academia de Letras de Teófilo Otoni, ano 2021, 3o lugar. É o primeiro capítulo do livro homônimo em produção por mim.
O Sol a pino castigava a montaria, a deixando ofegante e trôpega. O alazão bufava a cada passo dado, e ainda claudicava, pois havia lascado a unha da mão direita, fazendo Serapião se balançar mais do que o normal. Água em profusão era uma quimera longínqua – um sonho que assolava a mente tanto de Serapião, quanto de seu animal. Suas reservas eram escassas.
A cada passo dado, a sela rangia mais um lamento, brilhando ao Sol causticante, como se reclamasse de sua vida infeliz, quente e seca. Só o que se via à volta eram cactos: xiquexiques, palmas, nada que pudesse crescer ali era de diferente feitio.
Serapião apertava os olhos como se dotado de uma miopia terrível – era insuportável a luminosidade do Sol, e ele não tinha como proteger os olhos – à cabeça levava aquele típico chapéu coco do Nordeste brasileiro, aquele, arredondado, feito de couro de bode, manchado pelo suor que cada vez mais o desidratava lentamente.
Logo atrás, igualmente combalido, vinha seu cunhado Hermóge, chapéu desabado sobre o rosto, montado em uma pequena égua pequira, quase como uma figura caricata, ambos de cabeça baixa para alijar a vista dos raios brilhantes do astro-rei. Mas sua vestimenta, seu chapéu e seu gibão, eram todos mais novos do que o do compadre. Parecia que sua roupa nunca vira a lida verdadeira como a do compadre. Mas era porque ele tivera tempo de comprar uma roupa nova para a aventura que se descortinava diante de seus olhos.
Serapião não, preferiu ficar com a roupa velha mesmo – ela machucava menos – pensou. A cada movimento, a cada ranger de suas selas, se escutava um cincerro tocando sua lúgubre marcha fúnebre – era como se sinos dobrassem pelos quase mortos-vivos viajantes da caatinga, sonhadores aquosos, maltrapilhos, indigentes. Era a cabra, atada ao rabo da éguinha, que resoluta em não mais desperdiçar suas energias balindo, dobrava o cincerro a cada vara que avançava, como um voga marcando o passo da sofrida caminhada.
Com um esgar de desprezo, Serapião tentava manter sua atenção focada na trilha batida que seguia indefinidamente em direção ao Sol, o deixando de frente para a luminosidade que o ofuscava até o mais afastado recôndito de sua alma. Era como se a parte detrás de seu escalpo estivesse iluminada por dentro, lhe fritando os miolos.
Murmurava palavras incompreensíveis, talvez uma cantilena para passar o tempo, talvez uma oração. O fato é que Hermóge apenas ouvia seu compadre zumbindo como se fosse um feiticeiro proferindo preces, talvez chamando chuva, talvez amaldiçoando o calor. Com uma linha tênue de suor encimando seu lábio superior, Serapião continuava a cantilena, mas Hermóge não tinha coragem de o interpelar.
Sabia da personalidade explosiva de seu compadre e amigo de priscas eras. Cresceram juntos naquela distante gleba, seca e poeirenta, que os obrigava a fazerem brinquedos com o próprio revés, de montarem castelos disformes de poeira na areia terrosa da caatinga, de se sentirem reis e príncipes, cavaleiros ungidos de ordens seculares que o pai contava que existiam do outro lado do mar. Mas o que era o mar? Nunca lhes passava pela cabeça como seria ver aquela quantidade de água toda reunida em um só lugar, e ainda por cima salgada, o que lhes impossibilitaria saciar as suas sempiternas sedes.
De que servia o mar então, meu Deus – pensavam os meninos. Sonhavam em sair dali, mas para aonde?
O mundo deles se resumia a poeira e seca – não conheciam nada além disso. Então como queriam abandonar uma coisa que somente era tudo o que sabiam da vida? Estudo, não tiveram. Letras, não conheciam. Mas não eram analfabetos não.
Segundo o pai de Serapião, homem que sabe contar não era analfabeto não. Ambos amigos sabiam todos os números. Somavam e subtraíam. Multiplicavam com alguma dificuldade. Mas a divisão era para eles um mistério, uma magia.
Principalmente se envolvesse alguma coisa que não restasse inteira. Isso lhes rendia celeumas intermináveis, que às vezes se prolongavam até altas horas da noite, à beira do fogão de lenha externo, instalado sob uma coberta alijada da casa. Um caramanchão seco de galhos retorcidos e espinhosos.
Não porque fosse ali necessária uma fonte de calor, mas porque era a única fonte de luz disponível além da luz das estrelas e da Lua, e única fonte de distração nas longas noites quentes e suarentas da caatinga. De volta ao caminho, o chão estalava de quente, com trincas que desenhavam no barro ressequido arabescos que, imaginavam os ignotos viajantes, seriam algum tipo de escrita.
Nada mais tinha para descrever a cena, o calor, o suor, o sal que entrava pelos olhos dos dois, ardendo, nada mais continha o vazio quente e solitário do que uma palavra que trazia em si mesma a essência daquele lugar:
Cáustico.
* Conto premiado no VI Prêmio Literário da Academia de Letras de Teófilo Otoni, ano 2021, 3o lugar. É o primeiro capítulo do livro homônimo em produção por mim.
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