Amanhecia.
Uma tênue claridade se infiltrava através das cortinas rotas daquele quarto, mostrando um traço de pó na réstia de luz que aquecia a coxa descoberta de Mirna, que jazia deitada num catre mal arrumado, envolta numa aura desleixada, o quarto recendendo a sexo.
No balançar da cortina um raio de sol veio a tocar-lhe a face, que maquiada na noite anterior já lhe dava um aspecto quase grotesco depois de tanto suor.
Despertara lentamente, quase com medo de balançar a cabeça e sentir náuseas, ao som da viela úmida lá fora – seus pensamentos ainda estavam desconexos quando se deu conta de sua vida, após sentir uma leve ardência em meio à suas pernas: amargura, privações, tristeza e solidão.
Achara que a vinda do interior lhe daria emprego fácil – ilusão dos que lá moram: arranha-céus e empregos com fartura.
Levantou-se e foi ao toalete, acendendo a luz. Ao ver-se no espelho quase teve vontade de desligar a luz – sua maquiagem escorrida esculpia longos rios de tristeza em sua face, dando-lhe uma triste máscara de arlequim.
Em que me tornei? – pensou.
Lavou-se, passou uma escova nos cabelos em desalinho, embaraçados e cheirando à cigarro, retirou a maquiagem suja e novamente fitou-se no espelho.
É melhor um banho. – disse, sua voz soando estranha e sepulcral, como se estivesse debaixo d'água.
Sentindo-se imunda, afastou a ridícula cortininha de plástico que tampava a banheira, enquanto preguiçosamente uma barata imitava-lhe o ritmo e arrastava-se para o ralo.
Ao final do banho sentia-se molhada, mas ainda suja – sua alma estava suja como um lençol manchado.
Tendo removido toda sua maquiagem no banho e molhado os cabelos, ao sair nua da banheira (afastando novamente a cortininha infecta e ridícula), de relance se viu no espelho: sentiu-se usada, decadente, acabada.
Voltando ao quarto recolheu as roupas atiradas, os dejetos da noite anterior e lhes deu a destinação devida.
Ainda encontrou um cinzeiro cheio de pontas de cigarro e outras porcarias e desfez-se de seu conteúdo na privada, dando uma longa e forte puxada na cordinha da descarga como se a força imprimida na cordinha tivesse o poder de enviar mais rapidamente aquela imundície embora.
Abriu as cortinas puídas e quase teve um choque: a luz do sol feria seus olhos, já era tarde, o dia ia caminhando.
Mas seu corpo ainda exigia mais sono, e sua mente também, pois naqueles momentos podia esquecer-se da vileza de sua vida.
Já não era aquela formosura, suas ancas já estavam esgotadas de tantas idas e vindas, os seios já não mais era atrevidamente apontados para frente – sentia-se decadente.
Mas o que a levara a desperdiçar a vida?
Um sonho de fazer a vida na cidade ou simplesmente burrice?
Olhou para seu passado e nada viu. Olhou para o futuro e viu menos ainda.
E seu presente descortinava-se diante de seus olhos, impassível, inútil: um quarto horrível, um banheiro encardido e sem janela, sua pele flácida, a falta de perspectiva.
Já não sou mais querida. – pensou.
Ao abrir o trinco e fazer correr a janela, o calor do dia lhe atingiu, bufando, fazendo-a até a enjoar, revirando seu estômago e pulsando o fundo de seu olho.
Ruídos da vida diurna chegavam a seus ouvidos que se esforçavam para reconhecer os sons – ela era notívaga e o que conhecia era o som da noite.
O barulho monótono do dia, com seus milhares de ruídos que o compunham tornou-se uma melodia monocórdia que levava à sua mente ainda entorpecida a vontade de dormir novamente.
Preciso comer. – pensou – Quem vai querer uma velha, ainda por cima esquelética?
Procurou por restos da noitada, mas nada encontrou a princípio.
Revirando algumas almofadas achou um pacote azul de torradas salgadas, jogado num canto do quarto desarrumado.
Comeu-as e logo viu que não eram da noitada anterior. Mas não porque lembrava, e sim pela consistência estranha e meio úmida das torradas, bem como pelo gosto álacre que delas saía.
Não faz mal. – pensou.
Não tinha a menor vontade de sair à rua. Sua pele alva estava marcada pelas mãos que a seguraram gentil, mas impiedosamente no correr da noite.
Sentiu um vazio. Mesmo ali, naquele quarto abarrotado de tarecos e lembranças, sentia-se oca.
Aquele quarto a deprimia: as paredes manchadas, a cama lascada e bamba, uma penteadeira de fórmica rosa, horrível, as cortinas puídas...
Minha vida e labuta por essa pocilga? Tanto suor e doenças para isso? – vociferou feroz num ataque veemente à penteadeira que a fitava, muda.
Vestiu-se de maneira comportada, desceu as escadas temendo encontrar-se com alguém, mas tudo o que viu foi sua sombra a seguir-lhe e o barulho de seus saltos nas escadas de madeira velha. A presença humana apenas emanava, apenas era subentendida naquele lugar lúgubre.
Uma dupla de soul tentava arrecadar algumas moedas na rua, dois negros tocavam, o primeiro, um sax de metal amarelo todo amassado, o outro, um violão com apenas quatro cordas.
Tinham o rosto vincado e não eram menos decadentes que a caixa do sax aberta no chão, com seu forro vermelho desbotado e algumas míseras moedas no fundo.
Passou direto por eles ignorando os apelos e as cantadas – sentia-se só: tantos homens e nenhum para amar. Tanto sexo e nenhum amor...
Que vida era aquela?
Resolveu tomar um café. Entrou em uma bitaca e pediu um expresso forte: isto sim lhe daria forças para prosseguir empurrando a vida porca adiante.
O café fumegante a tirou do seu torpor e acordou sua alma, que acabrunhada sentiu-se apenas um pouco mais consciente da desgraça em que estava metida.
Resolveu passear pelo parque, observar os pombos que despreocupados ciscavam chão, ignorando que não possuíam braços, nem sentindo falta deles.
Chegou até a achar alguma graça na vida ao olhar as avezinhas no seu arrulhar, inocentes.
Passou horas a deleitar-se com os pombos e alguns transeuntes, cumprimentando ocasionalmente algum cavalheiro que porventura lhe acenasse educadamente.
Queria que este mundo acabasse, queria voltar ao interior, ao beijo com afeto, ao abraço sincero, largar tudo, mas não podia.
Havia um homem.
Um homem que, solícito, lhe oferecera ajuda logo que descera do ônibus vindo de sua terra, um homem que lhe ajudou, lhe dera abrigo e que agora a controlava, e que eternamente lhe deveria dinheiro, pois nunca conseguiria lhe pagar...
Uma tênue claridade se infiltrava através das cortinas rotas daquele quarto, mostrando um traço de pó na réstia de luz que aquecia a coxa descoberta de Mirna, que jazia deitada num catre mal arrumado, envolta numa aura desleixada, o quarto recendendo a sexo.
No balançar da cortina um raio de sol veio a tocar-lhe a face, que maquiada na noite anterior já lhe dava um aspecto quase grotesco depois de tanto suor.
Despertara lentamente, quase com medo de balançar a cabeça e sentir náuseas, ao som da viela úmida lá fora – seus pensamentos ainda estavam desconexos quando se deu conta de sua vida, após sentir uma leve ardência em meio à suas pernas: amargura, privações, tristeza e solidão.
Achara que a vinda do interior lhe daria emprego fácil – ilusão dos que lá moram: arranha-céus e empregos com fartura.
Levantou-se e foi ao toalete, acendendo a luz. Ao ver-se no espelho quase teve vontade de desligar a luz – sua maquiagem escorrida esculpia longos rios de tristeza em sua face, dando-lhe uma triste máscara de arlequim.
Em que me tornei? – pensou.
Lavou-se, passou uma escova nos cabelos em desalinho, embaraçados e cheirando à cigarro, retirou a maquiagem suja e novamente fitou-se no espelho.
É melhor um banho. – disse, sua voz soando estranha e sepulcral, como se estivesse debaixo d'água.
Sentindo-se imunda, afastou a ridícula cortininha de plástico que tampava a banheira, enquanto preguiçosamente uma barata imitava-lhe o ritmo e arrastava-se para o ralo.
Ao final do banho sentia-se molhada, mas ainda suja – sua alma estava suja como um lençol manchado.
Tendo removido toda sua maquiagem no banho e molhado os cabelos, ao sair nua da banheira (afastando novamente a cortininha infecta e ridícula), de relance se viu no espelho: sentiu-se usada, decadente, acabada.
Voltando ao quarto recolheu as roupas atiradas, os dejetos da noite anterior e lhes deu a destinação devida.
Ainda encontrou um cinzeiro cheio de pontas de cigarro e outras porcarias e desfez-se de seu conteúdo na privada, dando uma longa e forte puxada na cordinha da descarga como se a força imprimida na cordinha tivesse o poder de enviar mais rapidamente aquela imundície embora.
Abriu as cortinas puídas e quase teve um choque: a luz do sol feria seus olhos, já era tarde, o dia ia caminhando.
Mas seu corpo ainda exigia mais sono, e sua mente também, pois naqueles momentos podia esquecer-se da vileza de sua vida.
Já não era aquela formosura, suas ancas já estavam esgotadas de tantas idas e vindas, os seios já não mais era atrevidamente apontados para frente – sentia-se decadente.
Mas o que a levara a desperdiçar a vida?
Um sonho de fazer a vida na cidade ou simplesmente burrice?
Olhou para seu passado e nada viu. Olhou para o futuro e viu menos ainda.
E seu presente descortinava-se diante de seus olhos, impassível, inútil: um quarto horrível, um banheiro encardido e sem janela, sua pele flácida, a falta de perspectiva.
Já não sou mais querida. – pensou.
Ao abrir o trinco e fazer correr a janela, o calor do dia lhe atingiu, bufando, fazendo-a até a enjoar, revirando seu estômago e pulsando o fundo de seu olho.
Ruídos da vida diurna chegavam a seus ouvidos que se esforçavam para reconhecer os sons – ela era notívaga e o que conhecia era o som da noite.
O barulho monótono do dia, com seus milhares de ruídos que o compunham tornou-se uma melodia monocórdia que levava à sua mente ainda entorpecida a vontade de dormir novamente.
Preciso comer. – pensou – Quem vai querer uma velha, ainda por cima esquelética?
Procurou por restos da noitada, mas nada encontrou a princípio.
Revirando algumas almofadas achou um pacote azul de torradas salgadas, jogado num canto do quarto desarrumado.
Comeu-as e logo viu que não eram da noitada anterior. Mas não porque lembrava, e sim pela consistência estranha e meio úmida das torradas, bem como pelo gosto álacre que delas saía.
Não faz mal. – pensou.
Não tinha a menor vontade de sair à rua. Sua pele alva estava marcada pelas mãos que a seguraram gentil, mas impiedosamente no correr da noite.
Sentiu um vazio. Mesmo ali, naquele quarto abarrotado de tarecos e lembranças, sentia-se oca.
Aquele quarto a deprimia: as paredes manchadas, a cama lascada e bamba, uma penteadeira de fórmica rosa, horrível, as cortinas puídas...
Minha vida e labuta por essa pocilga? Tanto suor e doenças para isso? – vociferou feroz num ataque veemente à penteadeira que a fitava, muda.
Vestiu-se de maneira comportada, desceu as escadas temendo encontrar-se com alguém, mas tudo o que viu foi sua sombra a seguir-lhe e o barulho de seus saltos nas escadas de madeira velha. A presença humana apenas emanava, apenas era subentendida naquele lugar lúgubre.
Uma dupla de soul tentava arrecadar algumas moedas na rua, dois negros tocavam, o primeiro, um sax de metal amarelo todo amassado, o outro, um violão com apenas quatro cordas.
Tinham o rosto vincado e não eram menos decadentes que a caixa do sax aberta no chão, com seu forro vermelho desbotado e algumas míseras moedas no fundo.
Passou direto por eles ignorando os apelos e as cantadas – sentia-se só: tantos homens e nenhum para amar. Tanto sexo e nenhum amor...
Que vida era aquela?
Resolveu tomar um café. Entrou em uma bitaca e pediu um expresso forte: isto sim lhe daria forças para prosseguir empurrando a vida porca adiante.
O café fumegante a tirou do seu torpor e acordou sua alma, que acabrunhada sentiu-se apenas um pouco mais consciente da desgraça em que estava metida.
Resolveu passear pelo parque, observar os pombos que despreocupados ciscavam chão, ignorando que não possuíam braços, nem sentindo falta deles.
Chegou até a achar alguma graça na vida ao olhar as avezinhas no seu arrulhar, inocentes.
Passou horas a deleitar-se com os pombos e alguns transeuntes, cumprimentando ocasionalmente algum cavalheiro que porventura lhe acenasse educadamente.
Queria que este mundo acabasse, queria voltar ao interior, ao beijo com afeto, ao abraço sincero, largar tudo, mas não podia.
Havia um homem.
Um homem que, solícito, lhe oferecera ajuda logo que descera do ônibus vindo de sua terra, um homem que lhe ajudou, lhe dera abrigo e que agora a controlava, e que eternamente lhe deveria dinheiro, pois nunca conseguiria lhe pagar...
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