A VALISE
Abandonado aos meus pensamentos em uma estação de trem, vendo o lento passar e repassar de pessoas e animais, com o pensamento divagando entre os meandros intrincados da mente, sinto sentar-se ao meu lado um senhor de meia idade, com uma sobrecasaca em péssimo estado, mas com uma valise na mão que daria inveja ao mais alto executivo de qualquer lugar do mundo.
O velho agarrava-se à maleta como se ela fosse a sua única conexão com o mundo real, ele alisava-a com um ricto de satisfação em seu rosto, imaginando talvez o deleite de seu conteúdo.
Mais tempo se passou e comecei a reparar no andrajoso senhor grudado em sua valise ao meu lado, e subitamente a estação pareceu desaparecer de minha visão: só o que tinha em mente era o conteúdo daquela valise e o que imaginaria o senhor.
O banco de madeira antigo era desconfortável, ainda mais para um velho daquela idade, mas o mesmo não se mexia, seus olhos brilhavam, como se estivesse em um êxtase inexplicável.
Ouvia eu o pulsar de minhas veias, imaginava-me atirando-me sobre o velho e arrancando-lhe a caixa de pandora das mãos, mas minha razão me impedia de tal fato.
Mas o dia foi baixando, e a noite começou a se fazer sentir - e nós dois ali, parecíamos disputar quanto tempo ficaríamos naquele banco.
Um fiscal da estação passou e resmungou algumas palavras, mas em meu torpor não as reconheci, e o velho, olhos fixos no vazio, mantinha a valise firmemente guardada entre suas calejadas mãos.
Que tesouro encerrar-se-ia dentro daquela maleta linda, nas mãos de tão triste figura ?
Pensei em perguntar-lhe, mas sua alienação parecia tirar-lhe do mundo real e colocar-lhe num estado autista, chegava até a balançar-se no banco como que embalado por uma melodia silenciosa.
A noite finalmente chegou, e os ventos gelados do sul se fizeram sentir - minha pele arrepiava-se, mas o velho parecia nada sentir.
E num dado instante qualquer, o velho se inclinou para a frente e dormiu, ou parecia estar dormindo.
Saí para dar uma volta e esticar as pernas e voltar um pouco à realidade, fui ao imundo banheiro da estação, onde um limpador de banheiro fitava a imundície do mesmo com uma impassível indiferença, apoiado ao cabo da vassoura.
Saltando por entre as poças do alagado chão, após ter usado do fétido local, saí e voltei à mesma cena estranha: a estação parecia desaparecer e só o que via era o velho no banco.
O que mais me intrigava era que ele estava na mesma posição, e comecei a pensar que podia ele não estar apenas dormindo.
Aproximei-me do banco e tocando-lhe um dos ombros ele me fitou com os olhos vazios, perdidos no infinito e me disse apenas algumas palavras referenciando-se à mala e ao seu conteúdo - dizia ele que o conteúdo daquela mala era suficiente para acabar com todos os ímpios do mundo, acabar com toda a malícia e toda a sujeira.
Mas ele confessou-me que morrendo não tinha coragem de abrir a maleta, pois não sabia se poderia ver o que aconteceria, não teria certeza de que seu legado funcionaria.
Foi aí, num átimo, que propus-lhe que eu abrisse a maleta naquele momento e nós dois fitássemos o que continha ela. Imaginava eu que poderia ter explosivos suficientes para acabar com a estação.
O velho pressionou ainda mais a maleta até seus dedos ficarem brancos, mas a pressão foi lentamente sendo aliviada: será que ele me entregaria a valise ?
Por fim ele me fitou novamente com os olhos baços, sua íris já era branca, catarata talvez, e me diz que me sente e que me prepare pois ele abriria a maleta e acabaria com o mundo.
Pensei em correr, em sair dali o mais rápido possível, perguntei-lhe se havia explosivos na mala e ele me disse que não: era magia.
Comecei a duvidar do estranho poder daquela pequena, mas linda valise e indaguei-o quanto tempo a possuía, ele me respondeu que a mais de duzentos anos.
Absurdo, pensei, estou falando com um louco, só era essa explicação que vinha à minha mente.
Eis pois que o velho me diz para prestar atençao, pois duzentos anos para ele já eram um fardo muito longo para se suportar - vinha ele pensando que a humanidade poderia se redimir de seus pecados e se tornar pura novamente, mas ele começou naquele momento a ter certeza de que nunca as coisas mudariam - o ser humano vil seria sempre vil.
Abriu um dos braços e me mostrou a imunda estação, com seus pedintes, bêbados, brigões e meninos sem casa, como cachorros se aliviavam ali mesmo, papéis espalhados, o olhar hipócrita dos transeuntes.
E lentamente se aprumou, e abriu o primeiro trinco da maleta: um trovão se fez soar do lado de fora da estação - chuva, pensei, vou ter que voltar para casa debaixo de chuva, odeio isso.
Destravou o segundo trinco e a chuva fazia um ruído ensurdecedor no teto de zinco da estação - naquele momento comecei a ser tomado de uma apreensão terrível, um mal estar e disse ao velho, que me respondeu que tivesse calma, porque dali alguns minutos tudo teria acabado.
Então ele abriu a valise, e dentro dela não havia nada, mas o que aconteceu foi devastador: uma sombra negra começou a envolver tudo ao nosso redor, tudo parecia estar sendo engolfado pela escuridão, enquanto o velho sorria, feliz, com sua criação.
O mundo estava acabando - nem o ruído da chuva não se escutava mais, só se viam trevas e a face do velho que cada vez mais irradiava felicidade.
Num ímpeto tentei fechar a mala, mas minhas mãos nunca chegaram perto dela, o fim estava se mostrando para o mundo: o velho libertara as trevas que estavam engolindo tudo o que estivesse perto.
Tentei me levantar e correr em direção do que eu achava que era a saída da estação, mas não havia mais nada além de trevas, tudo escuro, tudo igual.
E o velho, com uma luz estranha em seu rosto disse que tinha valido a pena esperar aqueles duzentos anos, para ver toda a criação ser engolfada pelo mata borrão divino, que ele carregara por todo aquele tempo.
Ele era um enviado divino, com o cargo de acabar com o mundo se ele não se mantivesse de uma forma aceitável e limpa.
Mas sempre teve o coração bom e temia estragar todo o mundo, mas seu papel era definido, sua missão era dizimar a raça humana, para que Deus pudesse reiniciar sua criação novamente.
E assim foi que fiquei só na escuridão, eternamente com o velho que nada mais fazia senão balançar-se no que antes era o banco da estação, mas que agora era apenas uma sugestão de forma.
Fui tornado imortal como ele, e juntos iremos vagar pelas trevas.
Nunca poderia imaginar um enviado com uma simples maleta de escuridão dando cabo no mundo, mas assim o foi.
E eu, desolado, nada pude, nada posso fazer, preso na escuridão...
Abandonado aos meus pensamentos em uma estação de trem, vendo o lento passar e repassar de pessoas e animais, com o pensamento divagando entre os meandros intrincados da mente, sinto sentar-se ao meu lado um senhor de meia idade, com uma sobrecasaca em péssimo estado, mas com uma valise na mão que daria inveja ao mais alto executivo de qualquer lugar do mundo.
O velho agarrava-se à maleta como se ela fosse a sua única conexão com o mundo real, ele alisava-a com um ricto de satisfação em seu rosto, imaginando talvez o deleite de seu conteúdo.
Mais tempo se passou e comecei a reparar no andrajoso senhor grudado em sua valise ao meu lado, e subitamente a estação pareceu desaparecer de minha visão: só o que tinha em mente era o conteúdo daquela valise e o que imaginaria o senhor.
O banco de madeira antigo era desconfortável, ainda mais para um velho daquela idade, mas o mesmo não se mexia, seus olhos brilhavam, como se estivesse em um êxtase inexplicável.
Ouvia eu o pulsar de minhas veias, imaginava-me atirando-me sobre o velho e arrancando-lhe a caixa de pandora das mãos, mas minha razão me impedia de tal fato.
Mas o dia foi baixando, e a noite começou a se fazer sentir - e nós dois ali, parecíamos disputar quanto tempo ficaríamos naquele banco.
Um fiscal da estação passou e resmungou algumas palavras, mas em meu torpor não as reconheci, e o velho, olhos fixos no vazio, mantinha a valise firmemente guardada entre suas calejadas mãos.
Que tesouro encerrar-se-ia dentro daquela maleta linda, nas mãos de tão triste figura ?
Pensei em perguntar-lhe, mas sua alienação parecia tirar-lhe do mundo real e colocar-lhe num estado autista, chegava até a balançar-se no banco como que embalado por uma melodia silenciosa.
A noite finalmente chegou, e os ventos gelados do sul se fizeram sentir - minha pele arrepiava-se, mas o velho parecia nada sentir.
E num dado instante qualquer, o velho se inclinou para a frente e dormiu, ou parecia estar dormindo.
Saí para dar uma volta e esticar as pernas e voltar um pouco à realidade, fui ao imundo banheiro da estação, onde um limpador de banheiro fitava a imundície do mesmo com uma impassível indiferença, apoiado ao cabo da vassoura.
Saltando por entre as poças do alagado chão, após ter usado do fétido local, saí e voltei à mesma cena estranha: a estação parecia desaparecer e só o que via era o velho no banco.
O que mais me intrigava era que ele estava na mesma posição, e comecei a pensar que podia ele não estar apenas dormindo.
Aproximei-me do banco e tocando-lhe um dos ombros ele me fitou com os olhos vazios, perdidos no infinito e me disse apenas algumas palavras referenciando-se à mala e ao seu conteúdo - dizia ele que o conteúdo daquela mala era suficiente para acabar com todos os ímpios do mundo, acabar com toda a malícia e toda a sujeira.
Mas ele confessou-me que morrendo não tinha coragem de abrir a maleta, pois não sabia se poderia ver o que aconteceria, não teria certeza de que seu legado funcionaria.
Foi aí, num átimo, que propus-lhe que eu abrisse a maleta naquele momento e nós dois fitássemos o que continha ela. Imaginava eu que poderia ter explosivos suficientes para acabar com a estação.
O velho pressionou ainda mais a maleta até seus dedos ficarem brancos, mas a pressão foi lentamente sendo aliviada: será que ele me entregaria a valise ?
Por fim ele me fitou novamente com os olhos baços, sua íris já era branca, catarata talvez, e me diz que me sente e que me prepare pois ele abriria a maleta e acabaria com o mundo.
Pensei em correr, em sair dali o mais rápido possível, perguntei-lhe se havia explosivos na mala e ele me disse que não: era magia.
Comecei a duvidar do estranho poder daquela pequena, mas linda valise e indaguei-o quanto tempo a possuía, ele me respondeu que a mais de duzentos anos.
Absurdo, pensei, estou falando com um louco, só era essa explicação que vinha à minha mente.
Eis pois que o velho me diz para prestar atençao, pois duzentos anos para ele já eram um fardo muito longo para se suportar - vinha ele pensando que a humanidade poderia se redimir de seus pecados e se tornar pura novamente, mas ele começou naquele momento a ter certeza de que nunca as coisas mudariam - o ser humano vil seria sempre vil.
Abriu um dos braços e me mostrou a imunda estação, com seus pedintes, bêbados, brigões e meninos sem casa, como cachorros se aliviavam ali mesmo, papéis espalhados, o olhar hipócrita dos transeuntes.
E lentamente se aprumou, e abriu o primeiro trinco da maleta: um trovão se fez soar do lado de fora da estação - chuva, pensei, vou ter que voltar para casa debaixo de chuva, odeio isso.
Destravou o segundo trinco e a chuva fazia um ruído ensurdecedor no teto de zinco da estação - naquele momento comecei a ser tomado de uma apreensão terrível, um mal estar e disse ao velho, que me respondeu que tivesse calma, porque dali alguns minutos tudo teria acabado.
Então ele abriu a valise, e dentro dela não havia nada, mas o que aconteceu foi devastador: uma sombra negra começou a envolver tudo ao nosso redor, tudo parecia estar sendo engolfado pela escuridão, enquanto o velho sorria, feliz, com sua criação.
O mundo estava acabando - nem o ruído da chuva não se escutava mais, só se viam trevas e a face do velho que cada vez mais irradiava felicidade.
Num ímpeto tentei fechar a mala, mas minhas mãos nunca chegaram perto dela, o fim estava se mostrando para o mundo: o velho libertara as trevas que estavam engolindo tudo o que estivesse perto.
Tentei me levantar e correr em direção do que eu achava que era a saída da estação, mas não havia mais nada além de trevas, tudo escuro, tudo igual.
E o velho, com uma luz estranha em seu rosto disse que tinha valido a pena esperar aqueles duzentos anos, para ver toda a criação ser engolfada pelo mata borrão divino, que ele carregara por todo aquele tempo.
Ele era um enviado divino, com o cargo de acabar com o mundo se ele não se mantivesse de uma forma aceitável e limpa.
Mas sempre teve o coração bom e temia estragar todo o mundo, mas seu papel era definido, sua missão era dizimar a raça humana, para que Deus pudesse reiniciar sua criação novamente.
E assim foi que fiquei só na escuridão, eternamente com o velho que nada mais fazia senão balançar-se no que antes era o banco da estação, mas que agora era apenas uma sugestão de forma.
Fui tornado imortal como ele, e juntos iremos vagar pelas trevas.
Nunca poderia imaginar um enviado com uma simples maleta de escuridão dando cabo no mundo, mas assim o foi.
E eu, desolado, nada pude, nada posso fazer, preso na escuridão...
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