por Camilo Jurza
Meu pai, Rudolf Jurza, era filho do Cônsul da Tunísia, que nasceu em Marselha, na época de Napoleão e minha mãe, Paula Horvath, era uma iugoslava eslovena.
Eu fui educado falando alemão com minha mãe e pai e falando croata nas ruas e nas escolas de Zagreb, onde cresci. As escolas eram diferentes do que eram hoje, então eu de dia dava aula e de noite estudava em minha própria casa, indo na escola somente para marcar exames de disciplinas e para ir lá realizá-los.
Certo dia, um professor me abordou na escola, perguntando se eu era Camillo Jurza, e eu disse que sim. Então ele se virou para mim e disse que nunca havia me visto na sala de aula dele e queria saber o motivo.
Eu expliquei-lhe que eu tinha de trabalhar pois já tinha mulher e uma filha, e que eu estudava em casa.
Ele me disse que tentaria arrumar uma bolsa de estudo para mim, para me facilitar os estudos, e eu aceitei-a de bom grado. Mas tive de continuar trabalhando.
Era o final da guerra e foi anunciado ao meu pai, Rudolf Jurza, que iria ser confiscada a sua oficina mecânica, em Zagreb, capital da Croácia, na antiga Iugoslávia em prol do governo de Tito. Aquele aviso foi recebido com espanto: tínhamos duas horas para mudar uma vida de trabalho!
Como já vinha alimentando a ideia de fugir do comunismo, eu, Camillo Vladimir Jurza, então com trinta e um anos, providenciei rapidamente a remoção do meu barco (ainda incompleto) para a garagem de um conhecido meu. Eu tinha a ideia de atravessar o mar Adriático até a costa da Itália, onde tentaríamos nos estabelecer.
Podíamos atravessar a fronteira com a Itália pelas montanhas da Eslovênia, mas tínhamos que esquiar muito na neve e minha mulher não tinha prática de esquiar tanto quanto eu e tínhamos de carregar nossa filha de sete anos nas costas.
Dentro do barco, tinha eu guardado ripas de madeira (que foi difícil de conseguir em tempos de guerra), para o arremate final do barco e a confecção do estrado para o fundo do barco. Aproveitei também para pintar o barco com uma tinta especial que meu pai havia importado da Inglaterra, já que o velho também tinha vontade de possuir seu barco.
Fiquei algum tempo sem ir na garagem, e quando lá cheguei, quase morri de susto: as ripas que estavam soltas dentro do barco, foram utilizadas para tampar as janelas cujos vidros tinham se quebrado! Meu Deus, tive de arrumá-las de novo, desta vez com qualidade inferior.
Após ter eu pintado o barco, o levei de trem para a cidade de Rijeka (em italiano, Fiúme), na costa da Croácia. Com a barco amarrado já dentro da água, um dia mergulhei e olhei para o fundo do barco: dele corriam longos "cabelos" de tinta especial!
Tive de tirar o barco da água, esperá-lo secar e depois tive de pintá-lo novamente, desta vez com uma tinta vagabunda (que me deu melhores resultados do que a especial), sendo atrasada a minha partida.
Para não me complicar com a polícia secreta de Tito, fiz a viagem parecer o mais natural possível: supostamente iríamos passar uns dias numa ilha na costa da Croácia (Pogo), distante uns oitenta quilômetros de Rijeka. Não era fácil se abastecer de gasolina em qualquer lugar, por isso tínhamos a desculpa de estarmos saindo de Rijeka e não de algum porto mais ao sul, mais próximo de Pogo com uns oitenta litros de gasolina em galões.
Nossa filha, Jasna, com sete anos, não sabia que estávamos fugindo, para ela simplesmente era um passeio.
O visto de saída pedi para ser entregue na casa de um amigo, visto não estar eu em casa no dia marcado para a entrega. Mas eu não fui pegar o visto.
Embarcamos com nossos diplomas e provisões de comida, muito chocolate e água para podermos passar pelo Adriático, mas eu precisava ainda esperar uns dias para receber o meu diploma de engenheiro, que viria já acompanhado do local onde deveria eu trabalhar, fato este que me levou a não pegá-lo, pois não queria ficar atrelado à terra, num emprego onde teria eu uma cama e um prego para pendurar meu paletó, sabe-se Deus onde. E se eu tivesse sido empregado, seria ainda mais fácil para os comunistas notarem minha falta.
Na hora do embarque fomos interpelados pelos milicianos, que queriam nos fazer algumas "perguntinhas".
Pedi a minha filha que ficasse esperando no barco (graças a Deus os milicianos não tiveram a malícia de levá-la também, nem de revistar nossas coisas).
Na delegacia, houve uma complicação envolvendo uma nota de um dólar que eu tinha na minha carteira, num bolso falso (é difícil encontrar alguém que nunca tenha guardado algo diferente na carteira), e naquela época era proibido comprar dólar. Foi difícil mas consegui explicar-lhes que aquilo não valia nada, não dava para comprar nada (mal sabiam eles que eu sabendo desta proibição de se ter dólar, tinha no barco peles de marta, para fazer casaco, ainda não curtidas, para serem vendidas na Itália).
Depois de muitas horas, olhei pela janela e vi minha filha chorando na rua e fiz-lhe gestos para nos esperar no barco e de lá não sair.
Um miliciano me perguntou onde estava o visto de viagem, que deveria estar comigo, e eu desesperado disse que deveria estar na casa deste meu amigo, mas subitamente eu o vi na mesa e o miliciano ficando sem graça me entregou-o e nos liberou. Graças a Deus!
Uma tempestade se armava em alto-mar, mas eu não tinha conhecimento dela. Rapidamente, entramos no barco e lá fomos embora, em direção a Itália, na altura de Pesaro, onde saindo da península onde fica Rijeka, e paramos numa ilha para comermos algo e para verificar se a costa estava limpa. Era uma noite de lua cheia, uma lua enorme que me apavorava, pois iluminava o mar como milhões de lâmpadas acesas, denunciando-nos.
Mas os comunistas deviam achar que ninguém era tão louco de fugir numa noite de luar dessas, e isto nos ajudou.
Tentamos comer, mas escutávamos o ruído do mar e do vento e aquele murmúrio das águas se transformava em terríveis fantasmas comunistas a nossa espreita fazendo com que a comida não descesse. Ali era o último lugar onde poderiam nos interpelar (ainda era rota possível para Pogo), dali em diante, se o helicóptero visse aquela cauda e água de um barco em movimento, metralhava para
depois perguntar.
depois perguntar.
Embarcamos novamente e a tempestade começou a se fazer anunciar, relâmpagos ao longe, trovões e vento. O pequeno barco valentemente se encaminhava para seu destino.
Quando a chuva começou, meu desespero aumentou: ondas de mais de três metros lambiam o casco do meu pequeno barco, como se ele fosse uma pequena noz, jogando água para dentro do barco e nos jogando para o alto. Uma sorte que eu dei foi de o barco era do tipo sem quilha do tipo feito para lagos e águas calmas, o que me possibilitava fazer manobras mais rápidas.
Mais uma coisa me desesperou: no meio daquelas ondas enormes o motor parou, suas velas que ficavam do lado de fora do motor, se molharam, e eu não podia parar para reparar o motor, apesar de ter todas as ferramentas necessárias, mais dois hélices, velas, e tudo mais, porque se eu não controlasse o barco, ele
poderia virar.
poderia virar.
Eu via os raios caindo próximo e gritava a Deus que nenhum raio me atingisse, visto estar eu sentado em cima dos oitenta litros de gasolina, e controlava o barco como podia com os remos, evitando que o barco batesse quando descia a onda, porque logo isto racharia o barco, virando o barco cada vez que vinha a onda de onde caiu o raio.
Nessa confusão entrou água salgada na nossa água potável, e tivemos que coletar água da chuva para não ficarmos sem água, com uma lona estendida.
Pensava eu: Meu Deus, o que fui fazer para minha mulher e filha? Vou acabar matando todos nós. O sentimento de arrependimento tomava conta de mim...
No meio dessa agonia eu via a costa da Itália, não sei de que lugarejo, e gritamos a todos pulmões, nós três por Ayuto, mas nossa voz não os atingia. Outras vezes vi a costa do lado errado, quando o barco estava virado para o outro lado, e pensava meu Deus, será que voltamos para a Iugoslávia? Me preocupava estarmos chegando perto daquela ponta que parece uma espora da Itália (perto da província
de Molise) , de onde sai uma corrente que vai até as costas da Iugoslávia, e me ver empurrado de volta.
de Molise) , de onde sai uma corrente que vai até as costas da Iugoslávia, e me ver empurrado de volta.
Enquanto isso minha mulher e minha filha jogavam água para fora do barco com latas de biscoito que tínhamos levado, mas estavam perdendo terreno rapidamente e eu escutei a única reclamação de minha filha: porque estávamos indo para aquela ilha naquele barco tão pequeno e não naquele grande que tínhamos costume de ir?
No final de três noites de agonia, onde o barco passou quase cheio de água o tempo todo, as águas se acalmaram e pedi a minha mulher que segurasse um pouco os remos, para que eu pudesse dormitar nem que fosse por dez minutos, pois eu já estava tendo alucinações: no meio da chuva eu tentava me agarrar a um mastro no meio do mar com medo da "corrente da espora" estar me empurrando de volta para o comunismo (eu realmente via a estaca em alto-mar).
Caindo desmaiado, só voltei a mim quando fomos vistos por um navio de pesca norueguês (graças a Deus), nas costas da cidade de Ancona, na Itália, que nos içaram, e ao barco e nos deram comida e roupas secas para podermos dormir.
Só acordamos quando estávamos em Fano, uma cidadezinha próxima a Pesaro, onde era o nosso destino original, por ser mais perto da costa Iugoslava (tínhamos sido encontrados quase a cem quilômetros de Pesaro). Os pescadores queriam ficar com o motor do barco e eu ali, naquela situação aceitei sem pensar.
Logo no cais estavam os carabinieri, aguardando para nos interrogar, e logo eles sabendo que éramos fugitivos perguntaram pelo motor que teve de ser devolvido pelos pescadores.
Estávamos lá, como animais molhados, as peles para casaco fediam a quilômetros, pois tinham molhado, as mochilas era toda a nossa vida, quando alguns banhistas fizeram entra si uma coleta, e entregaram para minha mulher dizendo que era para ajudar, para comprar chocolate para a menina (aquilo me encheu os olhos de lágrimas e enche até hoje, visto que não tínhamos nenhum tostão no bolso, e estávamos num país estranho).
Nos mostraram uma notícia do jornal local, onde os dizeres apontavam uma fuga num bote, há alguns dias. Não haviam nomes, mas podíamos nos ver ali, estampados por entre aquelas letras miúdas em papel pardo, como que gritassem pela nossa angústia.
O procedimento normal seria de nos colocar todos na cadeia até esclarecer a situação, mas os italianos são antes humanos do que qualquer outra coisa, e como eu tinha dito que minha filha não iria para a cadeia, nos levaram para Pesaro, num hotel pago pela prefeitura (o mais engraçado e que era pago pelos comunistas da região que tinham ganho nas eleições).
Eu tinha um terno nas minhas coisas (eu o levei pensando em procurar emprego com ele) e quis vesti-lo para estar mais apresentável no interrogatório, mas quando o vi, tive de rir, ele tinha um sapato impresso nas costas pela água do mar.
Eu fiquei sob interrogatório por oito dias, tendo descanso apenas a noite, sendo interrogado quanto a questões sobre o porquê da minha fuga, sendo rastreada toda a minha história e meus antecedentes, enquanto minha mulher e minha filha tinham livre trânsito (devidamente escoltadas pelos carabinieri).
Ao cabo desses oito dias, após se certificarem que éramos refugiados políticos, me liberaram com a seguinte condição: como a Itália vinha enfrentando um grave problema de desemprego por causa da guerra, eu não podia trabalhar lá, mas se eu tivesse dinheiro, poderia ficar o quanto quisesse. Logo fiz o oficial saber que eu não tinha nada e que não sabia o que fazer.
Tudo menos voltar para o comunismo. Eles deviam estar me odiando lá, pois eu tinha aquela dívida com relação àquela bolsa de estudos para com o Estado Comunista.
O oficial então me sugeriu que eu fosse para um campo de refugiados, e ele frisou bem que não era campo de concentração, e lá fomos. O campo ficava numa cidade perto de Roma, uns cinquenta quilômetros mais ou menos, que se chamava Farfa Sabina.
Enquanto isso, meu barco permanecia sob a guarda do governo italiano, preso no cais de Pesaro. Foi aí que um dentista que fiquei conhecendo por lá me disse que queria comprar o barco e eu disse que o barco estava sob a guarda do governo.
Ele ofereceu cinquenta mil liras e me deu dez mil liras dizendo que era amigo do sujeito do governo e que usaria o barco enquanto este não fosse liberado e que me daria o resto quando o barco fosse liberado.
Quando finalmente o barco foi liberado, recebi do dentista todas as cinquenta mil liras: para ele as dez mil liras iniciais não tinham tanta importância, mas sabia ele que eram vitais para mim.
Mais uma vez no campo de refugiados, fiquei conhecendo o senso humanitário dos italianos: minha filha ficou doente, com uma febre de quarenta graus, mas brincava normalmente, até que foi descoberta a causa: tifo intestinal. Se não fosse tratada, na certa morreria. O médico do campo disse não ter recursos para tratá-la, e ela foi enviada a um hospital próximo.
Eu não podia estar lá com ela todo o dia, tinha de estar no campo, que era de uma organização de ajuda de refugiados, como a cruz vermelha faz hoje, e então consegui visitá-la dia sim, dia não, porque nosso dinheiro era curto para ir lá todos dias de ônibus. E uma vez coincidiu com o domingo a minha visita e eu fui perguntar ao diretor do campo o que deveria eu fazer e ele me disse para ir lá na segunda e eu disse que não, que tinha prometido, e ele acabou me arrumando uma carona para o hospital de motocicleta.
A ida transcorreu sem problemas, mas e a volta? Não havia carona, e eu tive que voltar andando para o campo, não sei quantos quilômetros, tive sorte de ser lua cheia e eu pude ver a estrada. Só me lembro de ter andado mais ou menos umas sete horas.
Já era 1952 e estávamos com os dias dos campos de refugiados contados, a organização fecharia, e os refugiados tinham de se arrumar. Eu tinha diversas opções para me estabelecer, já que na Itália não podia ficar: a Austrália, onde deveria eu trabalhar dois anos para o governo (de graça), sem a família até poder me fixar, o Canadá onde deveria trabalhar seis meses nas mesmas condições, Estados Unidos, onde estava díficil começar a se estabelecer no pós-guerra e Brasil, onde bastava me estabelecer, e onde eu tinha conhecidos de meu pai que poderiam me ajudar. Na Argentina estava o meu cunhado, mas para lá eu não podia ir, porque a Argentina não estava em condições de absorver refugiados.
Então lá fomos para o Brasil, com a esperança de recomeçar e ficamos num campo de refugiados no Rio de Janeiro, até eu arrumar emprego. Quando fui dar minhas qualificações me informaram para falar que eu era desenhista mecânico pois estavam precisando destes, porque engenheiros tinham sobrando.
Com isso tive de começar desde o início, porque fui informado que o Brasil não aceitava minhas qualificações de engenheiro, e que eu teria que estudar desde o primário no Brasil para ter isto reconhecido.
Foi assim que eu comecei a vida no Brasil: como desenhista.
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N.A. Original digitado por Paulo Jurza, neto de Camilo Vladimir Jurza, em 18 de julho de
1992 - Alguns detalhes podem não estar corretamente ajustados cronologicamente,
mas foi feito o possível para se manter dentro dos relatos de Camilo V. Jurza em seu
sítio em Morretes, Paraná.
N.A. Original digitado por Paulo Jurza, neto de Camilo Vladimir Jurza, em 18 de julho de
1992 - Alguns detalhes podem não estar corretamente ajustados cronologicamente,
mas foi feito o possível para se manter dentro dos relatos de Camilo V. Jurza em seu
sítio em Morretes, Paraná.
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