Quando seu aspirador de pó quebrou, a italiana Giovanna Micconi se
revoltou ao saber que a peça de reposição sairia quase o preço de um
novo. Valia mais a pena comprar outro, escutou do atendente, apesar
dos poucos anos de uso do aparelho. "Algo de muito errado está
acontecendo com a nossa sociedade", postou aos amigos no Facebook.
Doutoranda em literatura africana pela Universidade de Harvard e
residente há alguns anos nos Estados Unidos, ela compartilha um
sentimento universal - o de que o tempo de duração das coisas, assim
como a percepção do nosso tempo, também parece acabar de forma bem
mais rápida.
Geladeiras que duravam 40 anos e hoje são trocadas em menos de 10, TVs
ultrapassadas de uma hora para outra por novas funções,
liquidificadores que pifam a um impacto mais forte, computadores que
envelhecem assim que saem da caixa. Não importa se esses produtos são
comercializados em Boston ou São Paulo. Os bens de consumo duráveis
nunca foram tão descartáveis. Apanhados pelo ritmo estonteante da
evolução tecnológica e por uma acessibilidade sem parâmetros às novas
gerações de produtos, os consumidores pós-modernos sofrem de males
pós-modernos. Por um lado, vivem dias de exuberância material. Por
outro, a angústia de estar preso em uma espécie de "corrida
armamentista de consumo" e na tormenta da constatação da obsolescência
acelerada e inexorável das coisas.
O intervalo de troca de refrigeradores e lavadoras de roupa, que era
de dez anos na década de 90, hoje está em cinco ou seis anos.
Dados da indústria mostram que a velocidade das substituições, medida
pelo número de lançamentos no mercado, só acelera. Tomem-se como
exemplo os últimos três anos do setor de eletrônicos e
eletrodomésticos - no qual a efemeridade seja talvez mais notável - e
o que se vê é praticamente a duplicação de novos produtos em algumas
categorias. Em 2009 foram lançados no país 163 modelos de televisores
de tela plana. O que já parecia alto subiu ainda mais em 2011, com o
auge de 256 novos modelos apresentados em um único ano (de janeiro a
novembro). Nesse mesmo período, a oferta de novos celulares saltou de
116 para 175 e a de computadores de mesa, de 476 para 835. Isso foi
somente no Brasil, desconsiderando mercados maduros de alta renda,
onde os volumes são ainda mais expressivos, segundo a consultoria GFK,
que compilou as informações a pedido do Valor.
A entrada no mercado de uma classe média mundial gigantesca e sedenta
por novidades, que vê nas aquisições desses objetos uma forma de
acesso à cidadania, fez o modelo de consumo adotado e dominado pelos
Estados Unidos no século XX - o "american way of life" - replicar em
uma escala asiática.De olho nos novos nichos de consumo, grupos que
atuam em um segmento da economia passaram a abraçar outras áreas, caso
das coreanas LG e Samsung, tradicionalmente de celulares, que avançam
rapidamente sobre produtos da
chamada linha branca. Em 2005, quando estreou aqui, a LG tinha quatro
modelos de sua primeira linha de fornos micro-ondas. Hoje, apresenta
120 novos eletrodomésticos ao ano. A rival Samsung passou de 10 para
200 novos produtos ao ano.
A taxa de obsolescência encurtou à medida que a inovação acelerou e o
processo de produção ficou mais barato. Fred Seixas, gerente de vendas
da área de eletrodomésticos da LG, afirma que o tempo das coisas está,
de fato, menor. "A gente observa que o intervalo de troca de
refrigeradores e lavadoras de roupa, que era de dez anos na década de
90, hoje está em cinco ou seis anos", diz.
Muitas vezes, porém, o salto tecnológico não existe. O poder de
transformar a relação das pessoas com o mundo - propiciado por um
smartphone, por exemplo - é visto em uma parte mínima dos lançamentos.
E não se pode explicar essa tendência somente sob a ótica dos ganhos
de eficiência dos equipamentos, com o consumo menor de energia e a
produção com materiais menos danosos ao ambiente. "Isso só é relevante
em mercados desenvolvidos", diz Seixas. Pesquisas mostram que o
primeiro ponto determinante para a troca de um bem de consumo é o que
está por fora: design.
"A gente não faz inovação para trazer tecnologia, mas a partir de
aspirações do consumidor", confirma Rogério Martins, vice-presidente
de desenvolvimento de produtos da Whirlpool, dona das marcas Brastemp,
Consul e KitchAid, que põe quatro novos produtos por semana no
mercado.
Em prol dessa inovação, tecnológica ou plástica, o mundo ficou mais
carregado de objetos que logo se tornam inúteis e são descartados na
gaveta. E, para alguns economistas, esse é o real problema. Para
Eduardo Giannetti da Fonseca, professor do Insper de São Paulo, não há
nada de errado se o consumidor escolhe um produto mais caro e de maior
durabilidade ou um mais barato e de menor durabilidade. "Num ambiente
de mudança tecnológica, faz todo o sentido preferir uma coisa que não
vá durar tanto tempo, mas que não perca tanto valor ao ser vendido",
diz. "O maior problema é que o ambiente não está nessa conta. E o
ambiente não aceita desaforos." Giannetti engrossa o coro de
economistas que afirmam que não só o modelo de produção se tornou
insustentável, mas o cálculo da saúde econômica dos países tornou-se
cego aos problemas ambientais que afetam a vida das sociedades hoje.
(Leia
entrevista à pág. 8.)
O impacto ambiental da insustentabilidade já é medido de algumas
formas. Um estudo da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza
Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) mostra que a produção de lixo
no Brasil cresce a um ritmo maior do que o da população - 6,9% em
2010, provavelmente superando o da economia nacional neste ano. Os
resíduos de Nova York já são capturados por satélites no espaço. São
Paulo esconde seus restos sob uma montanha de 130 metros de lixo
compactado coberto por grama, à altura dos maiores arranha-céus da
cidade.
O embarque de resíduos com destino aos quintais da África não cessa.
Em nome da inovação, tecnológica ou plástica, o mundo ficou carregado
de objetos que logo se tornam inúteis e são descartados. Mas o que
dita essa toada? Quando passou a fazer sentido comprar um aspirador
novo e jogar o seminovo fora? Perdemos algo no caminho? Parte das
respostas está na própria cultura capitalista, cumulativa por
natureza, na inovação e nas mudanças profundas na estrutura familiar
da sociedade contemporânea. Parte no que a economia batizou como
obsolescência programada - ou a morte prematura dos produtos. Marca do
mercado de consumo no pós-Segunda Guerra, a obsolescência programada é
um conceito segundo o qual a indústria de bens prepara desgastes
artificialmente curtos para obrigar o consumidor a uma reposição mais
rápida do produto. "A lógica era simples: se não há novos consumidores
suficientes para cada produto, então é preciso fazer que os mesmos
consumidores comprem o seu produto outra vez", diz Carlota Perez,
pesquisadora venezuelana da Universidade de Cambridge especializada
nos impactos sociais e econômicos provocados pelas mudanças na
tecnologia. "A princípio isso ocorreu através de mudanças técnicas,
depois através da aparência dos produtos e dos modismos e, finalmente,
reduzindo a sua durabilidade".
Em um primeiro momento, isso parecia necessário para atender à
emergência, a partir dos anos 1950, de uma sociedade capitalista
afluente e uma classe operária bem remunerada, que impunham novos
desafios à indústria de bens. Nos anos dourados americanos, a pergunta
que passou a ser feita foi: como consumir novamente o que já se tem?
Não se tratava mais de vender a primeira geladeira, mas a segunda. O
mundo se deslocava de um padrão extensivo para um intensivo de
consumo. A pujança econômica dessa época colocou as empresas em outro
estágio de desenvolvimento. Após a revolução permitida com a
massificação de produtos, criada com o lançamento em série do Ford-T,
um ícone automobilístico, era preciso então se diferenciar da
concorrência. Henry Ford dizia que qualquer consumidor poderia comprar
um automóvel Modelo T, desde que fosse preto. Seu filho, Edsel Ford,
colocou a questão em nova perspectiva: "Mas são as cores que dão
lucro". A previsão estava correta.
Para vender a segunda geladeira ela deveria não só durar menos, mas
conter algo diverso do que estava disponível no mercado. Fosse por
mudanças radicais ou plásticas, a diferenciação resultaria no
sobrelucro embutido na competitividade capitalista. A inovação,
explica o economista João Batista Pamplona, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), seria uma alavanca poderosa como
estratégia de concorrência industrial para conseguir o monopólio.
Philip Kotler, um dos gurus do marketing, lembra que "muito da chamada
obsolescência programada é o trabalho das forças competitivas e
tecnológicas em uma sociedade livre, que levam a uma melhora
progressiva dos bens e dos serviços".
"Se não tivesse a intervenção da indústria, a obsolescência
aconteceria naturalmente em função do próprio consumidor", concorda a
filósofa Carla Rodrigues, da PUC-Rio.
Ávido por novidades, o consumidor contemporâneo - com muito mais
acesso ao crédito - passou a ter mais facilidade para obter o aparelho
dos sonhos, que já não precisava durar tanto, mas apresentar design
arrojado e reunir várias funções.
Com isso, a obsolescência do produto migrou para a dos serviços.
Assim, ao comprar uma cafeteira, fabricada por uma multinacional, será
informado de que ela só funcionará com os sachês de café da própria
empresa. "Você compra um celular simples. A operadora oferece então um
pacote gratuito de envio de fotos para outros celulares. Você compra
um outro celular para aproveitar essa função e um novo aparelho
permite acesso à internet, o que o leva a assinar o serviço de banda
larga que oferece uma ampla possibilidade de recursos caso tenha um
smartphone. Depois vem a videoconferência, o 3D e o ciclo nunca se
encerra", escreveu recentemente em artigo o consultor ambiental Tasso
Azevedo. "A cada passo que você dá, o aparelho anterior fica
obsoleto."
Ao mesmo tempo que a tecnologia empurrava de lado o velho em nome do
novo, a globalização puxava outra régua para cima. A descartabilidade
também está ligada ao fato de muitos bens de consumo terem se tornado
baratos hoje, a ponto de a peça de reposição de um aspirador equivaler
a mais da metade do preço de um aparelho novo, como relatou a italiana
Giovanna Micconi.
Isso é particularmente consolidado nas economias desenvolvidas, onde a
mão de obra qualificada é tão cara que impossibilita a troca de peças.
No Japão, montanhas de eletrônicos, geladeiras e bicicletas
descartados nas ruas espantam os desavisados. Cenas como essas chocam
pelo desperdício, pela desigualdade de renda, pela exaustão que impõem
ao planeta. E também pela corrida desenfreada pelo consumo, já que os
japoneses, como se sabe, estão entre as populações mais demandantes de
novas tecnologias de ponta no mundo.
Essa obsessão, intrínseca ao ser humano, nunca pode ser desprezada -
e, diga-se, desde que o mundo é mundo é assim. Já na Roma antiga há
relatos da necessidade de se sobressair em relação ao outro. Em uma
passagem do "Satiricon", do escritor Petrônio, um milionário admite
durante uma festa: "Só me interessam os bens que despertam no
populacho a inveja de mim por possuí-los". Bem mais tarde, o escritor
francês André Malraux cravou que o desejo do homem é ocupar um lugar
de honra na mente dos seus semelhantes.
O desejo do novo, daquilo que é visto como uma catapulta para a
ascensão social e nos torna supostamente superiores, é um valor
arcaico, que não só empurra os produtos para o fundo da gaveta - ou
para o lixo, elevando o passivo ambiental já monumental - como
pressiona a indústria por mais tecnologia. A efemeridade material é,
portanto, fruto também desse
consumidor inserido no que Giannetti, do Insper, chama de "corrida
armamentista de consumo".
"É do nosso passado remoto a competição por status que leve a alguma
proeminência. O valor de um produto não é o que me traz diretamente a
felicidade, mas deriva do fato de que os demais estão excluídos do
acesso a ele. A posse desses chamados bens posicionais - BMWs, TVs
planas, casas em bairros chiques - é o que passa a dominar o jogo
interpessoal. Aí você entra na corrida armamentista de consumo", diz o
economista. "Uma corrida armamentista, stricto sensu, é uma situação
em que dois ou mais países investem em armamento e, ao final, se
percebem mais inseguros do que no início. Porque ao mesmo tempo em que
um mobiliza recursos para se defender, o outro faz o mesmo. É um
paradoxo. E a indústria está sempre renovando os bens posicionais. É o
tênis de marca, o carrão. Quem não tem está fora".
Nas empresas, lucra mais quem entende essa condição humana. "Ninguém
melhor do que Steve Jobs compreendeu o conceito de fetichismo de
Marx", segundo o qual as relações sociais são mediatizadas pelos
objetos, diz Carla Rodrigues. "Ele captou o algo a mais [fetiche] que
os iPhones explicitam tão bem." O fundador da Apple talvez nunca tenha
lido Petrônio ou Malraux, mas respondeu aos anseios da sociedade
contemporânea. Desde a primeira geração de iPhones, há cinco anos, a
empresa comemora vendas recordes consecutivas, movimento seguido pela
avalanche de seus primos-irmãos (os iPads) e celulares e tablets da
concorrência.
É claro que, nesse processo, a publicidade tem desempenhado um papel
auxiliar importante, ao estimular a compra de "novos" produtos, que se
diferenciam dos anteriores basicamente no aspecto externo ou em um ou
outro acessório supervalorizado.
Em seu livro "A Cultura do Novo Capitalismo", o sociólogo americano
Richard Sennett joga luz sobre o fato de que os consumidores comuns
compram equipamentos com possibilidades que jamais utilizarão. "Discos
de memória capazes de guardar 400 livros, embora a maioria das pessoas
chegue a arquivar na melhor das hipóteses centenas de páginas, ou
programas de informática que nunca são acessados no computador",
relaciona Sennett.
Tome-se o exemplo do iPod. Em tese, esse cobiçado aparelho - fininho,
de design inovador, que transformou a indústria fonográfica - é capaz
de arquivar e reproduzir dez mil músicas digitais de três minutos. Mas
seria alguém capaz de se lembrar de todas as dez mil canções gravadas?
Não acabamos ouvindo sempre as favoritas? "E, no entanto, o fenomenal
atrativo
comercial do iPod consiste precisamente em dispor de mais do que uma
pessoa jamais seria capaz de usar. O apelo está, em parte, na ligação
entre a potência material e a aptidão potencial da própria pessoa",
diz Sennett, professor da London School of Economics (LSE) e do
Massachusetts Institute of Technology (MIT). Falado de outra forma,
ele representa a potência daquilo que podemos comprar.
A lista dos sonhos de consumo potencial foi inflada também porque o
grupo de referência dos consumidores mudou. O universo antes restrito
aos vizinhos do bairro, escola e familiares, foi escancarado pela
comunicação de massa. A explosão de informação permitiu que pessoas de
baixa renda sonhassem com a vida dos habitantes da grande cidade, seus
equipamentos eletrônicos de última geração e viagens internacionais,
intensificando a "corrida armamentista do consumo".
O problema desse movimento, diz Giannetti, é que ele não tem fim. Para
o economista, à medida que a sociedade prospera, as pessoas começam a
competir pelos bens posicionais. É aquele estágio em que as
necessidades mais básicas do ser humano, seus apetites universais, já
foram satisfeitos e passam a abrir espaço para o furor de se
distinguir em relação às pessoas comuns. É quando o foco da sociedade
volta-se para "ocupar um lugar de honra na mente dos seus
semelhantes", como afirmava o escritor francês. "E, quanto mais se
avança sobre os bens posicionais, mais as pessoas sentem que falta
algo. Não tem solução econômica para isso. Mas a conta recairá sobre o
meio ambiente, que não aceita desaforos."
Fonte:
http://www.valor.com.br/cultura/2491924/os-perigos-de-um-mundo-descartavel