gente se torna vítima de acidentes porque, antes, caiu numa cilada.
Sem perceber, algumas pessoas passam a confiar naquele sofisma segundo
o qual "se até ontem não me aconteceu nada, não será hoje que vai
acontecer…"
Mais curioso é o caso dos que unem a inexperiência àquelas fantasias
inspiradas em filmes de super-heróis. Acham que os acidentes mais
sérios ou resultam em morte instantânea ou em algum tipo de lesão que
logo se resolve, com um gesso charmoso e divertidas sessões de
fisioterapia.
Por incrível que pareça, poucas pessoas têm consciência das outras
hipóteses, principalmente das lesões que deixam a vítima incapaz para
uma vida normal. Quem duvidar disso, faça uma visita à Rede Sarah de
Hospitais do Aparelho Locomotor, que é referência internacional nessa
área médica.
Há algum tempo eu conversei longamente com Eduardo Biavati,
pesquisador do Centro de Pesquisas em Educação e Prevenção do Sarah.
Ele me disse que o desconhecimento sobre as reais conseqüências de um
acidente fica claro sempre que os funcionários conversam com os alunos
nas palestras que fazem em escolas e também quando levam os jovens
para conhecer os centros de reabilitação do hospital. Os visitantes
ficam chocados ao descobrirem como são as seqüelas.
O QUE MOSTRAM AS PESQUISAS
Na ocasião, o Eduardo mostrou-me uma pesquisa realizada em 1999 sobre
morbidade das causas externas de internações. É uma das poucas no
mundo que se aprofundam nos acidentes com moto, pois a maioria se
limita à questão do uso do capacete.
Vale lembrar que não são abrangidos os casos fatais, porque a Rede
Sarah não atua com foco no atendimento de emergência, mas sim no
trabalho de reabilitação. Eis o que mostra a pesquisa sobre os
motociclistas internados nesses hospitais:
Capacete – entre as vítimas com lesão cerebral, quase metade (46%)
usava capacete no momento do acidente. Traduzindo: com ou sem
capacete, a partir de certos níveis de impacto é praticamente
impossível evitar lesões cerebrais. Uma verdade tão clara entre
especialistas quanto subestimada entre leigos.
Mas desde já, vai aqui um esclarecimento: ninguém está concluindo ou
insinuando que esse equipamento é inútil ou dispensável. Nada disso. O
capacete protege, minimiza conseqüências de acidentes e deve ser usado
sempre. O que o estudo sugere é que, nos impactos muito fortes, nem o
capacete garante que o piloto está livre de lesões cerebrais, ainda
que em menores proporções. Mas lesão cerebral, por menor que seja,
sempre é coisa séria.
Lazer – a maior parte (59%) das internações de acidentados com moto na
rede Sarah é de pessoas que utilizavam a moto no lazer quando ocorreu
o acidente. Apenas 28% dos casos dizem respeito a pessoas que estavam
trabalhando. Esses números mostram que, apesar da grande expansão dos
serviços de motofrete, em que milhares de pilotos se expõem
diariamente à correria pelas mais perigosas ruas e avenidas, o maior
número de vítimas com seqüelas está em outro grupo: os motociclistas
que saem apenas para passear e se divertir.
Áreas urbanas – ao contrário do que se observa nas internações
relacionadas a acidentes de automóveis, no caso de motos a maioria dos
acidentes ocorre em áreas urbanas (57%). Aí está mais um ensinamento:
quem usa equipamento completo somente para pegar a estrada talvez não
saiba dos riscos que corre na cidade.
Lesões típicas – além daquelas já citadas, existe um padrão de lesão
que, estatisticamente, também está associado a acidentes de moto.
Trata-se da chamada lesão do plexo braquial. Trocando em miúdos, são
aquelas que afetam a região do pescoço e ombros. A conseqüência é que
muitas delas reduzem ou simplesmente eliminam os movimentos dos
braços. Entendeu agora porque existem aqueles macacões com grossa
proteção na região dos ombros e até nas costas?
VOCÊ É O VEÍCULO
Conheço um médico que nunca trabalhou na Rede Sarah, mas tem no
currículo as experiências de médico-cirurgião, motociclista apaixonado
e ex-vítima de acidente de moto. O nome dele é Max Carlos Braga Antão.
Segundo o Max, a melhor maneira de compreender o que ocorre em um
acidente com colisão é imaginar-se caindo do 2o ou 3o andar de um
prédio. "Aí então, considere que as lesões resultantes de um acidente
de moto podem ser bem piores do que a queda dessa altura." Sua
explicação sobre os equipamentos de segurança também bate na mesma
tecla. O equipamento é indispensável, pode minimizar muito as
conseqüências do acidente, mas não faz milagre! Mesmo que você esteja
com capacete, botas e macacão, imagine o que pode acontecer se cair do
3º ou 4º andar…
Max observa que, ao contrário do motorista, que está protegido dentro
de uma caixa de metal, o motociclista é, na verdade, o próprio
veículo. "Temos apenas um motor no meio das pernas, que nos leva aonde
queremos. Por isso, qualquer parte de nosso corpo está sujeita a
lesões de todo tipo, seja uma pequena abrasão ou fratura, até algo
mais sério, como hemorragia interna, desfiguração da face ou as
deficiências neurológicas e suas temidas seqüelas incapacitantes."
Depois de ouvir o Max, conversei com um médico ortopedista do Corpo de
Bombeiros, o capitão Aloisio Gonçalves de Souza Jr. Com a experiência
de quem acompanha atendimentos de emergência a vítimas do trânsito,
ele usou conceitos de física para explicar que corpos em sentidos
opostos somam suas velocidades. Numa colisão, a força cinética do
impacto é proporcional ao quadrado da velocidade. Para simplificar, o
ortopedista também utiliza a comparação com a queda de um edifício. E
cita o exemplo de um motorista dentro do carro. Numa colisão a apenas
48 km/h, o motorista sem cinto de segurança se chocará com o parabrisa
com a mesma energia decorrente de uma queda do 3º andar. Se estiver um
pouco mais veloz, a 56 km/h, a pressão será superior a sete toneladas…
Por todas essas razões, prevenir é fundamental. A conclusão do Dr. Max
é taxativa: "pense duas, três, quatro vezes antes de dizer que o sol
está muito quente para você usar o equipamento! Capacete, jaqueta,
botas e luvas não foram feitos para se usar só no frio. Para quem quer
vento na pele e sol na cabeça, recomendo trocar a moto por um carro
conversível!" Mandou bem, Max…
REALIDADE QUE DÓI
Não é para chocar ninguém, mas trata-se de uma realidade que dói
mesmo: entre os tipos de lesões que levam motociclistas à Rede Sarah,
a maior causa é o comprometimento da medula. Obviamente, estão fora
desses registros as lesões cerebrais com morte, já que casos dessa
natureza não chegam ao Sarah. Na grande maioria (74%) trata-se de
lesões completas, ou seja, com perda do movimento e da sensibilidade.
Já nas lesões ortopédicas, que constituem a segunda maior causa de
internação, 80% delas afetam os membros inferiores, nas seguintes
proporções: perna (50%), fêmur (30,6%), joelho (13,9%), tornozelos e
extremidades (5,6%). Depois de ler tudo isso, você ainda tem dúvida
sobre a necessidade de usar botas e outras proteções para essas
regiões do corpo?
COMO FICA O NOSSO PRAZER DE PILOTAR?
Agora, você deve estar-se perguntando: "diante desse quadro, como fica
o nosso prazer de pilotar?"
Bem, quer saber mesmo? O prazer de pilotar pode tornar-se ainda maior,
desde que se aprenda a lição a tempo. Isso é o que conta numa conversa
sobre segurança.
O que vale, aqui, é ajudar o motociclista a aprofundar o nível de
consciência sobre os riscos à sua volta e os meios de se proteger.
Vale até estimular sua capacidade de concentração e autocontrole
naqueles momentos de excitação com o coice da cavalaria a um leve
toque no acelerador. O que não vale é distanciar o motociclista do
sagrado prazer de pilotar. Nem há motivos para tal. Afinal, a emoção
de pilotar pode ser tanto maior e mais legítima quanto mais clara a
consciência dos seus riscos e limites.
Texto: José Ricardo Zanni / fonte: http://www.sobresites.com/