O recente anúncio de uma colaboração estreita entre a Peugeot francesa e a
General Motors (que inclui a compra de 7% das ações da empresa francesa pela
GM) abriu a temporada de especulações a respeito do futuro de ambas as
companhias, a natureza da aliança, e a situação das operações do gigante
americano na Europa.
Mas a verdade é que ninguém, a não ser os funcionários das empresas
diretamente ligados a este negócio, sabe algo de concreto sobre os objetivos
do acordo. Sabe-se apenas que existe um acordo, e só. O resto é pura
especulação.
Sendo assim, vou refrear o desejo de comentar algo sobre o qual não se sabe
nada, e apenas contar uma interessante passagem da história de como a
Peugeot começou a fazer automóveis, que tem a ver com outro acordo entre
empresas de nacionalidades diferentes. E que por ser uma história francesa,
é muito mais interessante, cheia de drama, reviravoltas e paixão que
qualquer uma que se conte da americana e conservadora GM.
A Peugeot nasceu muito antes do automóvel, em 1810. A família Peugeot (ainda
hoje dona da empresa), originária da cidade de Sochaux, começou fabricando
moinhos movidos a água. Ao redor de 1850, uma metalúrgica da família era
aberta em Montbéliard , onde fabricava todo tipo de utensílio de metal:
facas, garfos e principalmente os hoje famosos moedores de café (acima),
pimenta e sal. Um dos mais interessantes produtos eram os arames de metal
usados na estrutura de vestidos da época; deles derivaram outros produtos
como estruturas de guarda-chuvas, depois lâminas para serras de fita, depois
raios de rodas, e finalmente rodas completas. Da roda foi um pulo para o
produto mais conhecido da empresa: a bicicleta, a primeira aparecendo em
1882. Em 1889, quatro triciclos movidos a vapor foram fabricados, desenhados
por León Serpollet, mas mesmo naquele tempo, carros a vapor eram algo sem
futuro, e logo a empresa desistiu deles.
Emile Levassor
Para entender como a Peugeot entrou no negócio dos automóveis para valer,
então, precisamos voltar um pouco atrás no tempo. Mais exatamente para o ano
de 1853, quando um fabricante de equipamentos de marcenaria chamado Paul
Périn inventa uma nova máquina: a serra de fita. Esta grande invenção, útil
até hoje, resultou em grande expansão na fábrica de Périn. Em 1867, contrata
um novo diretor para organizar a fábrica, um grande engenheiro que em pouco
tempo se torna seu sócio: René Panhard. Com a morte de Périn logo em
seguida, Panhard chama um velho amigo para trabalhar consigo. Ele conhecera
Emile Levassor quando estudante em Paris, e os dois permaneceriam amigos por
toda vida desde então. Périn et Panhard se torna então Panhard et Levassor,
no longínquo ano de 1868.
Paul Périn
Outra volta no tempo se faz necessária aqui. Quando se formaram na École
Centrale de Paris, Panhard e Levassor tomariam caminhos distintos por um
tempo. Enquanto Panhard ficava na França e encontrava prosperidade no
negócio de maquinas para trabalho com madeira, Levassor se mudava de mala e
cuia para Liège, na Bélgica, onde conseguira um emprego em uma grande
empresa de usinagem de metais. Lá conheceu um companheiro de trabalho que
seria instrumental para seu futuro: Edouard Sarazin, um advogado francês
formado na mesma escola que ele e Panhard.
René Panhard
Sarazin e Levassor logo retornam ao seu país natal, Levassor para trabalhar
com seu amigo Panhard, e Sarazin, para montar um escritório de patentes.
Entra em cena então mais um nome conhecido nesta história: Nicolaus August
Otto, o inventor do motor a combustão interna a quatro tempos. Otto
acreditava que as patentes de sua empresa Deutz estavam sendo infringidas
por alguns franceses, e contrata Sarazin para defendê-las em Paris. Com o
sucesso de suas ações de defesa, Sarazin cai nas graças da empresa,
tornando-se o seu representante francês, e se torna amigo pessoal do
engenheiro-chefe da Deutz, um senhor chamado Gottlieb Daimler.
Nicolaus August Otto
Otto via o seu motor a gasolina como algo melhor que o motor a vapor de
então, mas não acreditava no seu uso em carruagens ou mesmo bicicletas
autopropelidas, coisa que seu visionário engenheiro-chefe Daimler (e seu
acessor direto e companheiro Wilhelm Maybach) já enxergava como futuro.
Daimler (Maybach a tiracolo) acaba pedindo demissão e abrindo sua própria
empresa em Cannstatt. A Deutz acabaria por fazer automóveis também, por um
breve período, mas sem o sucesso imenso de Daimler, uma mostra que mesmo
gênios como Otto podem meter os pés pelas mãos. Mas a Deutz ainda existe, e
entre os empregados de seu passado figuram, além de Otto, Daimler e Maybach,
gente como Rudolf Diesel, Robert Bosch, e Ettore Bugatti. A gente tem que
respeitar uma empresa com uma história assim...
Mas voltando ao fio de nossa meada, quando em 1882 Daimler abre sua empresa,
seu amigo Sarazin vai visitá-lo em Cannstatt, e lá se oferece para
representá-lo na França. Numa mostra de como o mundo e as pessoas eram
diferentes, os amigos apertam as mãos e selam o acordo, que nunca iria para
o papel, mas garantia a Sarazin exclusivos direitos em seu país para uma
invenção que em uma geração mudaria completamente o mundo.
De volta a Paris, Sarazin resolve que seria desejável construir um motor
Daimler na França, para testes e demonstrações a possíveis clientes. Neste
ponto as histórias convergem: quem melhor que seu velho amigo Emile Levassor
para construí-lo?
Um Panhard et Levassor 1895
Sarazin e Levassor trabalham juntos no projeto, e tudo parecia bem, mas aí
acontece uma tragédia: vítima de uma doença nos rins, Edouard Sarazin vem a
falecer na véspera de natal do ano de 1887. Tinha apenas 47 anos. Ao lado de
seu leito de morte, sua esposa Louise e seu amigo Emile Levassor. Antes de
morrer, diz a Louise: "Para o seu bem e de nossas crianças, eu recomendo que
você mantenha nossas conexões com Daimler. A sua invenção é totalmente
confiável, e tem um grande futuro, cuja magnitude nós não podemos nem
começar a entender hoje."
Mas e agora? Tudo que Sarazin tinha era um aperto de mão e uma promessa.
Como continuar a conexão com Cannstatt? Emile Levassor já tinha sido
infectado pelo nascente vírus do automóvel, e também estava entregue de
corpo e alma a este sonho. O automóvel ainda nem existia fisicamente, mas
era um sonho vivo de mobilidade e liberdade na mente destas pessoas, e este
sonho não podia morrer. Na vontade de Levassor, ele era real como a vida.
Emile apóia então o último desejo do amigo, e convence a sua viúva a entrar
em ação.
Edouard Sarazin
Louise Sarazin mostra-se então mais que uma bela e jovem viúva; mostra-se
uma mulher forte e de rara determinação para seu tempo. Escreve uma carta
para Daimler onde conta toda a situação. Daimler escreve de volta triste
pela perda do amigo e garantindo a sua viúva que nada havia mudado. Louise
então viaja sozinha para Cannstatt, de onde volta entusiasmada e maravilhada
com o pequeno e potente motor de Daimler; em sua bagagem vinha um
monocilíndrico, o primeiro motor de Daimler a ser visto na França.
Levassor resolve continuar o projeto de construir o motor, e na segunda
viagem de Madame Sarazin a Cannstatt, ainda em 1888, faz companhia à viúva
do amigo. Lá, maravilhados, os dois tem uma visão do futuro: um automóvel,
uma motocicleta e uma lancha movidos pelos motores de Daimler. Imaginem o
que não deve ter sido tal coisa; só a ida do homem à Lua em tempos modernos
deve ter tido impacto semelhante. Levassor conhece ali Gottlieb Daimler, o
início de uma longa relação de respeito mútuo, e um evento histórico
importantíssimo para a história do automóvel: sem os motores Daimler de
Panhard et Levassor o automóvel não teria se popularizado na França como foi
antes de 1900, e sem capturar a imaginação do mundo com esta popularização,
a história do automóvel se atrasaria por uma geração inteira. Este encontro
em outubro de 1888 é um daqueles eventos simples, mas de uma importância que
nem os seus participantes diretos poderiam imaginar. Mas com certeza sabiam
que estavam construindo o futuro, e não há sentimento maior de realização. E
finalmente, Louise Sarazin voltava para casa com um contrato de
representação formal!
Gottlieb Daimler
Certamente foi um evento importante para Emile Levassor de uma outra forma
inusitada. Algo deve ter acontecido durante a viagem, porque a relação entre
ele e Louise Sarazin se tornou muito mais próxima, e pouco tempo depois os
dois se casavam. Muita gente diz hoje que foi um clássico casamento por
interesse; Levassor se tornava o detentor da licença do motor que ele mesmo
iria produzir, com exclusividade. Eu prefiro acreditar que a proximidade
entre os dois em tempos difíceis, e a romântica viagem para ver o futuro, na
então longínqua Alemanha, elevou seus espíritos e os fez acreditar em um
futuro ligado àquela nova máquina de tal forma, que os fez se entregarem a
paixão. A verdade? Cada um que acredite na sua.
No verão de 1889, Daimler e Levassor sobem num carro Daimler e vão visitar
Armand Peugeot em Valentigney. O industrial de sucesso Peugeot estava
entusiasmado com a idéia de fazer automóveis, mas seus experimentos a vapor
estavam longe de ser satisfatórios. Mas uma volta no Daimler selou o início
de um novo fabricante francês. Ali mesmo foi firmado um contrato para que
motores Daimler fabricados por Panhard et Levassor seriam fornecidos à
Peugeot. Em 1890, aparecia o primeiro quadriciclo Peugeot (abaixo), e o
resto é história conhecida.
Emile Levassor se tornaria um dos grandes pioneiros do automóvel. Grande
entusiasta das competições, pilotou seus Panhards em muitas vitórias nas
épicas corridas do início deste esporte. Há um monumento erguido em 1907, em
Paris, que homenageia sua grande vitória na corrida Paris-Bordeux-Paris de
1895 (abaixo). Emile levassor dirigiu por 48 horas seguidas para vencer esta
prova, algo que inspira respeito até hoje.
Foi também criador do famoso sistema Panhard, a primeira arquitetura criada
para um automóvel (ao invés de adaptações de carroças e quadriciclos), onde
o motor dianteiro, a embreagem, a transmissão e o cardã eram montados em
linha em um chassi, um atrás do outro, culminando em um eixo motriz
traseiro. Exatamente como em qualquer picape ou caminhão moderno, mais de um
século depois. Como, por exemplo, a recém-lançada Chevrolet S10, que então
já é ligada de alguma forma à Peugeot, empresa que agora amarra seu futuro
ao da GM. O mundo realmente dá voltas.
E Louise Sarazin-Levassor, coitada, estava destinada a se tornar viúva
novamente. Um acidente em competição mata o pioneiro Emile Levassor em 14 de
abril de 1897. Apesar de tudo que fez, tinha apenas 54 anos.
MAO
PARA SABER MAIS:
Automobile Quarterly Vol VI, nr 2 (outono de 1967)
Texto original em:
http://autoentusiastas.blogspot.com/2012/03/madame-sarazin-e-seus-dois-maridos.html#more
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