Numa das empresas em que trabalhei, eu fazia parte de um grupo de
treinadores voluntários.
Éramos coordenados pelo chefe de treinamento, o professor Lima, e
tínhamos até um lema: "Para poder ensinar, antes é preciso aprender"
(copiado, se bem me recordo, de uma literatura do Senai).
Um dia, nos reunimos para discutir a melhor forma de ministrar um
curso para cerca de 200 funcionários. Estava claro que o método
convencional — botar todo mundo numa sala — não iria funcionar, já que
o professor insistia na necessidade da interação, impraticável com um
público daquele tamanho.
Como sempre acontece nessas reuniões, a imaginação voou longe do
objetivo, até que, lá pelas tantas, uma colega propôs usarmos um
trecho do Sermão da Montanha como tema do evento. E o professor, que
até ali estava meio quieto, respondeu de primeira.
Aliás, pensou alto:
– Jesus era peripatético…
Seguiu-se uma constrangida troca de olhares, mas, antes que o hiato
pudesse ser quebrado por alguém com coragem para retrucar a afronta,
dona Dirce, a secretária, interrompeu a reunião para dizer que o
gerente de RH precisava falar urgentemente com o professor. E lá se
foi ele, deixando a sala à vontade para conspirar.
- Não sei vocês, mas eu achei esse comentário de extremo mau gosto —
disse a Laura.
– Eu nem diria de mau gosto, Laura. Eu diria ofensivo mesmo — emendou
o Jorge, para acrescentar que estava chocado, no que foi amparado por
um silêncio geral.
– Talvez o professor não queira misturar religião com treinamento —
ponderou o Sales, que era o mais ponderado de todos. — Mas eu até vejo
uma razão para isso…
– Que é isso, Sales? Que razão?
– Bom, para mim, é óbvio que ele é ateu.
– Não diga!
– Digo. Quer dizer, é um direito dele. Mas daí a desrespeitar a
religiosidade alheia…
Cheios de fúria, malhamos o professor durante uns dez minutos e,
quando já o estávamos sentenciando à fogueira eterna, ele retornou.
Mas nem percebeu a hostilidade. Já entrou falando:
– Então, como ia dizendo, podíamos montar várias salas separadas e
colocar umas 20 pessoas em cada uma. É verdade que cada treinador
teria de repetir a mesma apresentação várias vezes, mas… Por que vocês
estão me olhando desse jeito?
– Bom, falando em nome do grupo, professor, essa coisa aí de
peripatético, veja bem…
– Certo! Foi daí que me veio a ideia. Jesus se locomovia para fazer
pregações, como os filósofos também faziam, ao orientar seus
discípulos. Mas Jesus foi o Mestre dos Mestres, portanto a sugestão de
usar o Sermão da Montanha foi muito feliz. Teríamos uma bela mensagem
moral e o deslocamento físico… Mas que cara é essa?…Peripatético quer
dizer "o que ensina caminhando".
E nós ali, encolhidos de vergonha.
Bastaria um de nós ter tido a humildade de confessar que desconhecia a
palavra que o resto concordaria e tudo se resolveria com uma simples
ida ao dicionário. Isto é, para poder ensinar, antes era preciso
aprender. Finalmente, aprendemos. Duas coisas.
A primeira é: o fato de todos estarem de acordo não transforma o falso
em verdadeiro.
E a segunda é que a sabedoria tende a provocar discórdia, mas a
ignorância é quase sempre unânime.
Artigo escrito por Max Gehringer e publicado na Revista VOCÊ S.A.
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